terça-feira, 29 de março de 2011

A Tecnologia e a Ciência na vida Moderna

Neste artigo, deveremos entender que a tecnologia é o “estado da arte” da técnica - e assim não está adstrita ao curso estritamente capitalista. Como tem a terminação logos, (tecno)logia será conhecimento, interpretação, aplicação e/ou estudo da técnica e das suas variáveis, enquanto aplicação e aplicativo, ao longo da história e em determinada sociedade

1ª PARTE
A Técnica no Modo de Produção

Digamos que há muitas formas de relacionar sociedade – trabalho – tecnologia, mas tentaremos apenas um caminho que talvez se possa chamar de Sociologia da Tecnologia e no qual abordaremos as linhas gerais dos três clássicos da sociologia do século XIX. Outros autores denominam esta interpretação de Estado-ciência; porém, pensamos que não se trata aqui de nenhum atributo do Estado, mas sim da ciência social investigativa e que se mostra capaz de analisar o desenvolvimento da técnica e de seus vários usos pela humanidade. Nossa abordagem também será generalista e não exaustiva – na verdade, mais uma apresentação dos métodos de investigação de cada um dos autores clássicos da sociologia, no que se refere ao tema.

Voltando a atenção para o presente, é fácil perceber como a técnica, as invenções, as criações, as especulações e os investimentos científicos, o engenho dos mais capacitados, as inquietações mais profundas dos cientistas mais renomados, o trabalho imaterial, a intelectualidade, estão presos ao sistema capitalista. É como se tudo corresse para a economia de mercado, como se nada pudesse ser visto ou pensado fora daí. Alguns até chamariam a isto de razão instrumental e pode ser mesmo: a razão como instrumento da produção, pois, não há livre pensamento fora do mercado. Tudo ocorre como se não houvesse vida inteligente fora desse tipo de ocorrência sistêmica.

Porém, se olharmos com mais atenção pelo olhar do que denominamos aqui de Sociologia da Tecnologia, então, veremos que foi exatamente esse fluxo do sistema econômico capitalista que sempre embalou a criatividade e a perspicácia de Marx, Weber e Durkheim. De certo modo, nesse quesito estariam de acordo: foi dado um grande passo à frente pelo capitalismo, o que mostra sua força e superioridade, e é justamente o incremento de si mesmo. Esse incremento não se dá fora da racionalidade (cientificidade), da divisão social do trabalho que estimula os homens a produzirem mais e a cooperarem entre si ou, por fim, na constante revolução dos meios de produção. Também é importante frisar que isto só ocorre dessa forma porque a energia intelectual (científica e tecnológica) e material (dos recursos do capital e financeira) é gigantesca, constante e brutal em relação a qualquer força de oposição – se fosse Auguste Comte, diria que é a força do progresso: uma força indubitável que faz parecer tolos, ignorantes ou reacionários os que ousam indagar o futuro e questionar o progresso que nos levará até lá.

Devemos ver que se trata de uma instrumentalização da razão de longa data, um processo que, pelo menos, vem desde a formação da baixa modernidade, com a compactação do Estado Moderno, a partir da centralização de Portugal, passando logo a seguir pela leitura metódica (como não-especulativa) da política, com a virtú de Maquiavel, essa inteligência tecnológica passou a predominar — Hobbes adaptou-se bem ao mecanismo . Com Descartes e o racionalismo (em 1637 publicou o seu Discurso do método), o método ganhou muito mais peso e significado, mas esse domínio do método já vinha pelo menos desde o século XVI — as grandes navegações exigiam muito cálculo e precisão. É importante deixar claro que em tempos obscurantistas foi “revolucionário” escrever de modo claro sobre a própria necessidade de “tornar as coisas precisas e claras” — a clareza e a dúvida metódica atuava para esclarecer as irracionalidades da época. O poeta português Fernando Pessoa diria que navegar é preciso: sendo a navegação um atributo ou tarefa estritamente matemática . Em suma, podemos dizer que a razão na modernidade sempre esteve na base do avanço do capital e é o que Marx nos dizia no Manifesto.

De modo complementar podemos dizer que só um Estado muito forte poderia custear uma empreitada do porte da que ficou conhecida como expansão ultramarina (ou colonialismo) e, somente neste sentido, podemos pensar em um tipo de Estado-ciência. Àquela altura, o Estado Capitalista estava às voltas com o desenvolvimento metódico e científico, com a tecnologia alcançando o status de Razão de Estado. Até hoje se mantém esse segredo de Estado, para as descobertas científicas e tecnológicas: bem como se pune atualmente como crime, a violação do segredo insdustrial . Aliás, nesta imbricação entre técnica e política, é curioso notar que Estado também vem de stato e de status, que quer dizer firme, forte. E desde então desenvolvimento tecnológico e política se tornaram sinônimos de fortaleza e domínio do conhecimento — a tecnologia e a ciência seriam parte vital da soberania.

Já pensando no período de nossa contemporaneidade, meados do século XX, a rapidez com que a tecnologia sofreu transformações, bem como impactou a vida social, foi de extrema vertigem – nós nos transformamos muito rapidamente, num ritmo nunca imaginado em longos dois milhões de anos de desenvolvimento tecnológico e social. Desse período em diante passamos a conviver com outros fenômenos também muito presentes e avassaladores, como o sucateamento, a depreciação acelerada, a robotização, a rotinização, a coisificação. Depois de 1848, a tecnologia viria a revolucionar mais uma vez todo nosso modo de vida, de agir e de pensar. É fantástico e dramático (como as contradições do sistema) pensar que as pessoas possam ter consciência de que são meras coisas, mesmo sendo trocados como qualquer objeto na ordem da produção. No máximo da indignação, o sujeito se rebela e grita: “não me trate assim, porque não sou coisa”. O que Marx diria ao ver milhões de pessoas dotadas de um tipo de consciência fetichista e ao mesmo tempo niilista? Diríamos que isto é uma parte da chamada consciência maquínica — que não é exatamente pensar como a máquina, mas sim a partir da máquina, e não ser capaz de abrir mão disso. Agora, se tomarmos que a máquina tem sua matriz na ferramenta, então, é preciso recuar à priscas eras para obter esta datação.

Sob este prisma, também o processo de hominização se revelou contraditório, pois a mesma técnica que nos afastou das árvores, e depois fortaleceu nossa consciência maquínica, a partir da mercantilização e com a plenitude da mercadoria, na era da massificação (década de 1950), hoje tornou-se nossa maior negação e fonte de total incerteza: lixo ambiental, guerra nuclear. Nesta onda frenética de revolucionar constantemente os meios de produção, a ironia está em que o fim do capitalismo pode coincidir com o fim das condições de vida social (como a conhecemos no Ocidente consumista). A “leitura catastrófica” (com muitas aspas) de filmes como Blade Runner e Mad Max tem que ser muito relativizada.

Mas de onde vem essa idéia de revolucionar o modo de produzir, de pensar, de viver? Esta lógica é o que compõem o centro do chamado materialismo histórico e para tal é preciso retomar Marx, em duas obras que se interligam: Ideologia Alemã (1845-46) e Formações Econômicas Pré-capitalistas (1857-58). Há um intervalo de dez anos entre uma produção e outra, entre o jovem Marx e o autor já maduro.

Em linhas sucintas, assim nos apresenta Hobsbawm o materialismo histórico-concreto:

Primeiramente, Marx preocupa-se — como em seu Prefácio à CRÍTICA — em estabelecer o mecanismo geral de todas as transformações sociais: isto é — a formação das relações sociais de produção que correspondem a um estágio definido de desenvolvimento das forças produtivas materiais; o desenvolvimento periódico de conflitos entre as forças produtivas e as relações de produção; as “épocas de revolução social” em que as relações sociais de produção se ajustam novamente ao nível das forças produtivas. Esta análise geral não implica nenhuma formulação sobre períodos históricos específicos nem sobre relações de produção e forças produtivas concretas. Assim, a palavra “classe” nem sequer é mencionada no Prefácio, na medida em que as classes são apenas casos especiais das relações sociais de produção em períodos históricos específicos, embora, de certo, muito longos (Hobsbawm, p. 15).

Essa idéia de revolucionar a base material de produção (meios de produção, tecnologia), portanto, vem da história e da ação dos homens concretos sobre a sua realidade de produção. A revolução tecnológica aplicada ao mundo da produção, portanto, seguiria a lógica de um amplo esquema geral. A fase atual da globalização do capital, o capitalismo como o sentimos hoje, ainda seguindo a interpretação dada por Hobsbamw equivale à “...forma antagônica final do processo social de produção” (1991, p. 15).
Agora, é interessante notar que o esquema geral também estava bem formulado e seria reapresentado por Engels em 1892, com seu Do socialismo utópico ao socialismo científico:
A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca de produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas , é determinada pelo que a sociedade produz e como produz e pelo modo de trocar os seus produtos . De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na idéia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a benção em praga, isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores. E assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente que conter-se — mais ou menos desenvolvido — os meios necessários para por fim aos males descobertos . E esses meios não devem ser tirados da cabeça de alguém, mas a cabeça é que tem de descobri-los nos fatos materiais de produção, tal e qual a realidade os oferece (Engels, s/d, p. 49).

Mas do passado ao presente, há algo de diferente, ou seja, do modo de produção antigo ao modo de produção moderno. Antigamente, o homem era o objeto da produção, hoje, a produção é o objetivo do homem e a riqueza é o objetivo da produção. Mas do passado ao presente há muito mais, há uma subversão de valores, ou seja, do valor de uso latente de outrora, experimentamos o predomínio (que parece inesgotável) do valor de troca. No passado, a relação era direta, e mesmo com a mediação do Estado, a mercadoria não tomava o controle das relações sociais.

Como dizia Marx, agora voltando ainda mais ao passado, o ponto chave das sociedades antigas, baseadas na propriedade da terra e na agricultura indica que: “...o objetivo econômico é a produção de valores de uso, isto é, a reprodução dos indivíduos em determinadas relações com sua comunidade...” (Marx, 1991, p. 77).
Nos modos de produção baseados na sociedade tribal, a tribo, enquanto formação coletiva, não era feita por indivíduos, mas sim pela própria consciência social de que sua existência provinha da terra, do mundo natural e da ampla interação com o social. Neste aspecto não há alienação das condições sociais, espirituais e materiais da vida. Em suma, estas sociedades se resumem em dois aspectos básicos:

1. Apropriação das condições naturais de trabalho: da terra como o instrumento original de trabalho, ao mesmo tempo laboratório e reservatório de matérias primas; entretanto, apropriação que se efetua não por meio do trabalho, mas como condição preliminar do trabalho. O indivíduo, simplesmente, considera as condições objetivas de trabalho como próprias, como a natureza inorgânica de sua subjetividade, que se realiza através delas. A principal condição objetiva de trabalho, em si, não se mostra como o produto do trabalho mas ocorre como natureza. De um lado, temos o indivíduo vivo, do outro a terra como a condição objetiva de sua reprodução (Marx, 1991, p. 77).

Duas questões são fundamentais nesta passagem de Marx: 1. acumula-se não pelo instinto da avareza, mas sim da produção social da vida; 2. não há estranhamento de forma alguma. Porém, como vimos, Marx indicava dois fatores básicos de conformação desse modo de vida, então, falta o segundo:

2. A atitude em relação à terra, à terra como propriedade do indivíduo que trabalha, significa que o homem mostra-se, desde o princípio, como algo mais do que a abstração do “indivíduo que trabalha”, tendo um modo objetivo de existência na propriedade da terra, que antecede sua atividade e não surge como simples conseqüência dela, sendo tanto uma pré-condição de sua atividade, como é sua própria pele, como são os órgãos sensoriais, pois toda a pele, e todos os órgãos dos sentidos são, também, desenvolvidos, reproduzidos, etc., no processo da vida, quanto pressupostos deste processo de reprodução. A mediação imediata desta atitude é a existência do indivíduo — mais ou menos naturalmente evoluída, mais ou menos historicamente desenvolvida e modificada — como membro de uma comunidade; isto é, sua existência natural como parte de uma tribo etc (Marx, 1991, pp. 77-78).

De modo simples, diremos que o “excedente da natureza” é condição para o trabalho (coleta, pesca, caça) e que o trabalho é condição da existência (não de acumulação). Com isto, também vemos que nem sempre fomos abstrações de nós mesmos ou mero efeito da negação de nossas melhores potencialidades e virtudes. Vimos ainda que a vida naturalmente integrada nos vestia com se fora a própria pele, talvez a exemplo do que faz a cultura e a tecnologia hoje em dia. Seguindo Weber, então, diríamos que ainda não havia se instalado o sentimento complexo (e perplexo) do desencantamento do mundo. Na origem da vida social, o homem se agrupava, se reunia em torno de seus semelhantes simplesmente porque só se é humano se se está em grupo.

Simplesmente não existe ser humano isolado e o modo de produção é sua alavanca rumo a esse contexto de hominização, isto é, elaborar novos modos de produção aumentaria (como de fato aumentou) as condições gerais de fabricação da espécie homo. Novamente em Marx:

Um indivíduo isolado, do mesmo modo que não poderia falar, não poderia ser proprietário do solo. Quando muito poderia viver dele, como uma fonte de suprimentos, como vivem os animais. A relação com a terra, como propriedade, nasce de sua ocupação, pacífica ou violenta, pela tribo, pela comunidade em forma mais ou menos primitiva ou já historicamente desenvolvida (Marx, 1991, p. 78).

O objetivo geral dessa apresentação resumida das sociedades primitivas, tribais, foi apenas o de reforçar a importância lapidar que o desenvolvimento dos modos de produção tiveram ao longo do processo de hominização. Porém, se pensássemos exclusivamente na fase da modernidade em que vivemos atualmente, talvez disséssemos que o resultado final da hominização não coincide com a humanização requerida, ou até que estejamos experimentando uma profunda crise de desumanização, com as constantes e sucessivas revoluções do modo de produção capitalista, desde meados do século XX.

Neste sentido, o contraste do passado com o presente, entre o valor de uso e o valor de troca (pela comparação diria Weber), pode ser uma chave valiosa para entendermos o mundo atual, além de melhor compreender nossas angústias pessoais, as pragas sociais e as tantas irracionalidades que nos consomem. Por isso, é interessante notar que os modos de produção asiático e antigo (são diferentes), praticamente não conheceram a sujeição do indivíduo ao valor de troca — este valor de troca que é nossa própria escravidão, uma vez que somos só coisas prontas para o consumo, troca ou descarte. Ironicamente, o objetivo das sociedades primeiras era formar cidadãos, pessoas melhores, de melhor qualidade:

A riqueza não constituía o objetivo da produção, embora Catão pudesse ter investigado os mais lucrativos métodos de cultivo, ou Brutus pudesse, até, ter emprestado dinheiro à taxa mais favorável de juros. A pesquisa, sempre, era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadãos [...] A riqueza, por um lado, era um objeto materializado em objetos, em produtos materiais, de certa forma contraposta ao homem, como um sujeito. Por outro lado, na qualidade de valor, se constituía simplesmente no direito de comandar o trabalho de outras pessoas, não com propósitos de domínio mas de prazer pessoal, etc [...] Assim, a antiga concepção segundo a qual o homem sempre aparece (por mais estreitamente religiosa, nacional ou política que seja a apreciação) como o objetivo da produção parece muito mais elevada do que a do mundo moderno, na qual a produção é o objetivo do homem, e a riqueza, o objetivo da produção (Marx, 1991, p. 80).

Aqui vemos a superioridade do mundo antigo baseado no valor de uso, em que as pessoas não eram meros objetos de consumo e de troca. Esta proposta de análise material dos modos de produção ainda auxiliará na demolição da tese do progresso positivista, pois Marx será claro ao dizer que, em certo aspecto, o mundo antigo é superior ao mundo da moderna sociedade capitalista:
Na economia política burguesa — este completo desenvolvimento das potencialidades humanas aparece como uma total alienação, como destruição de todos os objetivos unilaterais determinados, como sacrifício do fim em si mesmo em proveito de forças que lhe são externas. Por isto, de certo modo, o mundo aparentemente infantil dos antigos mostra-se superior; e é assim, pois, na medida em que buscarmos contornos fechados, forma e limitação estabelecida. Os antigos proporcionavam satisfação limitada, enquanto o mundo moderno deixa-nos insatisfeitos ou, quando parece satisfeito consigo mesmo, é vulgar e mesquinho (Marx, 1991, p. 81).

Nesta fase, se eles praticavam trocas era só para abastecimento do grupo, daquilo que não se tinha em abundância, e funcionava como expediente para o abastecimento e não para acumulação. Portanto, o valor de uso reiterado será sua marca mais distintiva. Com isso, também podemos ver que do passado remoto, pré-capitalista, para o mundo moderno da total dependência tecnológica, a organização social e seus valores variaram drasticamente: do valor de uso unificador ao valor de troca e ao isolamento social.

Digamos ainda que a consciência maquínica — um certo fatalismo tecnológico: só se sobrevive graças aos instrumentos, às ferramentas, aos prolongamentos, aos aportes e suportes tecnológicos do homem — já estava presente; mas nas sociedades primeiras essa consciência era compartilhada, vivificada, estava sob controle do grupo. Por isso, não só neste aspecto, constituem o avesso do mundo moderno, em que o homem se encontra como extensão da máquina. Em suma, o que há muito nós já perdemos, ao menos desde o final do artesanato, é esta consciência social, comunal sobre a propriedade dos meios de produção. Nas tribos de outrora, esta consciência comunal coincidia com a propriedade coletiva dos meios de produção, sempre a partir da terra, da propriedade fundiária.

Hoje, o que não temos mais — e neste contraste fica evidente — é o controle sobre os “modos de (re)produção da vida social”. Em termos complementares, lá atrás, na história da produção, o trabalho imaterial (intelectual) de organização da produção — e de liderança política — não estava deslocado da comunidade e de seus interesses; hoje o próprio trabalho imaterial, responsável pela criação e organização da vida social, surge apenas como uma das tantas facetas da alienação produzidas pelo predomínio absoluto do valor de troca. Por um lado, a diferença essencial se dá entre a consciência social sobre a produção material e espiritual da vida e, por outro, com a mera consciência maquínica a que estamos sujeitos, na qualidade de “robôs alegres”, como já denunciava C. W. Mills.

Hoje, a riqueza, o trabalho e a produção não são mais humanos, no sentido de que serviriam à satisfação das necessidades humanas (individuais e do grupo) e ao desenvolvimento das potencialidades de todos como um todo. A riqueza capitalista não é a riqueza humana:

Na verdade, entretanto, quando despida de sua estreita forma burguesa, o que é a riqueza, senão a totalidade das necessidades, capacidades, prazeres, potencialidades produtoras, etc., dos indivíduos, adquirida no intercâmbio universal? O que é, senão o pleno desenvolvimento do controle humano sobre as forças naturais — tanto as suas próprias quanto as da chamada “natureza”? O que é, senão a plena elaboração de suas faculdades criadoras, sem outros pressupostos salvo a evolução histórica precedente que faz da totalidade desta evolução — i.é. a evolução de todos os poderes humanos em si, não medidos por qualquer padrão previamente estabelecido — um fim em si mesmo? O que é a riqueza, senão uma situação em que o homem não se reproduz a si mesmo numa forma determinada, limitada, mas sim em sua totalidade, se desvencilhando do passado e se integrando no movimento absoluto do tornar-se? (Marx, 1991, pp. 80-81).

Portanto, vê-se claramente como o homem não é mais o centro desse projeto de hominização, mas sim a própria riqueza material. Talvez na ficção do futuro venhamos a discutir se somos ou não, imagem e semelhança de nossos replicantes, como no Blade Runner. De qualquer modo, com ficção ou não, riqueza hoje significa concentrar na produção e no capital todas as necessidades, capacidades, prazeres e forças produtivas: a riqueza como a plena realização (ou esgotamento) das faculdades criadoras, mas agora, unicamente, para proveito do mundo maquínico de consumo e do próprio capital insaciável.

Bibliografia

ALQUIÉ, Ferdinand et. al. Galileu, Descartes e o mecanismo. Lisboa : Gradiva, 1987.

ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo : Editora Moraes, s/d.

HOBSBAWM, Eric. Introdução. IN : Formações Econômicas Pré-capitalistas. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1991.

MILLS, C. Wright. A Imaginação Sociológica. 4ª ed. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1975.

MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo : Martins Fontes, 2002.

MARX, Karl. Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política. 3ª ed. São Paulo : Martins Fontes: 2003, pp. 03-08.
______ Formações Econômicas Pré-capitalistas. 6ª ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1991.

Vinício Carrilho Martinez